terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Congregação Internacional dos Perturbadores do meu Sono (CIPS)

Antes de iniciar essa história, peço que tu que estás lendo analises com circunspecção a obra abaixo. Foi elaborada há 15 anos e tem uma representatividade, digamos assim, exótica. Observa a arte e tira tuas conclusões. Logo após te apresentar ela, explico a inspiração e a intenção do artista que foram a justificativa de sua criação. Cá está:


De pronto, assumo a autoria de tal pintura! Sua criação foi concebida em meio a uma noite de caos, desespero e dor. Era calor, estava tudo tão quente....

Sim, estava quente! Era verão, uma noite de janeiro ou fevereiro de 2002, não lembro bem. Estava no auge dos meus 8 anos. Deitava sereno em meu leito, pronto para o repouso. De repente, senti pequenas fisgadas em meu braço. Suspirei angustiado e resisti imóvel, ignorando as dores. De nada adiantou, continuei a sentir leves aferroadas, agora em diferentes partes do meu corpo. Dolorido e desconfortável, resolvi cobrir-me para evitar que a tortura continuasse. A quentura do meu corpo me fazia respingar o suor por toda a cama, mas mantive-me firme embaixo das cobertas. Era meu acalento. Um zumbido atormentava meus ouvidos, sabia que o perigo estava próximo de mim. Confesso, não era a primeira noite que sentia os ruídos ressoando pelo meu quarto, próximos aos meus ouvidos e não me deixando dormir. Aquela, inclusive, era a pior das noites. Eu sabia que não podia mais deixar isso acontecer. Não podia covardemente esconder-me inerte debaixo de um lençol enquanto esses seres demoníacos queriam meu sangue e minha agonia. Basta de tormento. Refleti, mesmo no estado dramático que me encontrava. Em meio ao calor, ao barulho e aos comichões cada vez mais gradativos, levantei-me! E disposto a enfrentar a situação. Não sei se o estado febril me motivou a cometer tal irracionalidade, mas me movi disposto a mostrar coragem e acabar com essa aflição de uma vez por todas.

Mas como? Acredito que todo o brasileiro que passou por essa situação, tentou resolvê-la em algum momento com um método alternativo. É um problema comum dos verões. Os mosquitos vêm, picam nosso corpo e zunem nos nossos ouvidos. Quase sempre saem impunes. Maldição! Hoje seria diferente, pensei! Hoje os humilhados vencerão! Mas como?

Reforço que tu não percas da memória a obra que apresentei lá em cima.

Bom, eu tinha de ser inventivo e tinha de ser rápido. Eu precisava ser mais esperto que esses insetos inoportunos. O chiado e as picadas persistiam. Olhei todo o quarto rapidamente por uma ou duas vezes. O interruptor me chamou atenção. Era nele que eu deveria agir, alguma voz me dizia isso - ou talvez fossem apenas os zumbidos. Mas fui atraído, a solução estava emergindo, eu sentia. Em um ato genial, abri a gaveta dos materiais escolares. Entre o livros e cadernos, encontrei o estojo. Era lá que encontraria algo. Mas, oh, nada prestava. Tesoura, lápis, caneta, cola... Não, não serviam! Continuei a procurar. Até que encontrei meu objeto. O corretivo! Sim. Seria ele a me salvar. Santo corretivo.

Empunhei o corretivo em mãos e fui aguerrido em direção ao interruptor. Iniciei minha magnum opus.

Acredito que tu já compreendeste meu intento. Sim, é isso! Simularia um homem!!! Hahaha. Iria enganar aqueles insetos malcriados.

Eu jurava estar encarnado na virtuosidade de Michelangelo e na inspiração caótica de Van Gogh. Seria uma obra com detalhes fieis e traços marcantes. Abri o corretivo e o pincel esbranquiçado revelou-se. Então, minha obra iniciou. Agi em silêncio, não podia acordar ninguém na casa. Suportei os beliscões no corpo e os agudos em meus ouvidos. Após longos 10 minutos de labuta: voilà. Materializou-se meu homem. Ah, ele surgiu! "Per ché non parli?", sussurrei modestamente.

Mas... faltava algo. Precisaria ser algo que atraísse de súbito os mosquitos. "Um pouco de marketing", pensei. Voltei à gaveta dos materiais. Lá estava a cola brilho, tendência escolar no início dos anos 2000. Era isso! Com mais brilho, mais cor, mais adorno... seria o primeiro lugar no qual os insetos se dirigiam ao adentrarem o quarto. Despejei lá, estava pronta a obra. Toda a brilhantura possível estava distribuída naquele interruptor.

Eis que tu deves estar te perguntando: "por que no interruptor?". Sim, artistas de 8 anos têm a tendência de rabiscar paredes, armários, quadros. Claro, isso seria o normal. No entanto, os artistas de 8 anos não têm o sadismo que minha alma tinha naquele momento. Marquês de Sade teria inveja. Escolhi o interruptor pois os insetos sedentos iriam se dirigir ao interruptor e ao mordiscar aquele simulacro de homem, seriam cruelmente eletrocutados. Enquanto eu, deitado em minha cama, tranquilo, riria com a alma mais leve que uma pluma. Era minha vingança escorpiana! As noites mal dormidas haviam me transformado em um menino sem escrúpulos.

Pronto! Tudo estava pronto. A obra estava finalizada e já era quase manhã. Na noite seguinte minha retaliação seria perpetrada - afinal. Deitei na cama após o trabalho árduo. Dormi, com um sorriso perverso esboçado no rosto. Sem me preocupar com os zumbidos e os picados que restavam ao amanhecer, seriam os últimos!

O dia seguinte foi de ansiedade. Só esperava a noite. Queria a noite. Minha obra seria posta à prova. 

Funcionaria? O que tu achas, leitor? Bem, os atos das crianças trazem consigo uma magia que ninguém entende, não é?

Chegou o dia e... não, é óbvio que minha ideia não funcionou. A noite seguinte foi uma tortura das piores. Parece que os mosquitos descobriram minha ideia e contra-atacaram com tudo. Eu juro, foi a maior doação de sangue involuntária da história. Amanheci 2 litros de sangue mais leve. Uma criança enfraquecida, um artista humilhado. Mal conseguia olhar novamente para minha obra.

Mas não me referia ao insucesso da minha arte rupestre quando falei da magia dos atos das crianças. Falo da magia que essa obra carrega por si. Toda a vez que a revejo, viajo à inocência a impureza daquele instante, daquela noite mágica na qual depositei toda minha imaginação e criatividade infantil nesse rabisco eterno. Não há dia em que não largo um sincero sorriso ao ver esses traços desacertados. Sei lá, há algo de belo.

Aos que querem visitar a obra, declaro que encontra-se do mesmo modo que foi desenhada em 2002. No antigo Meu Quarto, que hoje é uma sala de estudos (eterno vacilo, mãe). Faço questão de apresentá-la pessoalmente.

Eis que alguns podem achar que exagerei na história aqui contada. Mas foi assim. 

Exatamente assim.

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